Vontade é a sensação de desejar algo acreditando que este algo nos dará prazer/bem-estar.
Necessidade é a vontade intensa. Tão intensa que sentimos que precisamos de algo como se faltasse parte de nós ou algo essencial a nós. O sofrimento é tão grande que não sentimos o mundo como prazer ou desprazer, mas como sofrimento ou menos sofrimento. Assim, os prazeres reduzem o sofrimento. Sem a sensação agradável de bem-estar, tendo somente um alívio do sofrimento, não identificamos como vontade, mas como uma necessidade.
Temos vontade de comer, mas temos necessidade de comer quando ficamos muitas horas sem nos alimentar. Queremos tanto comer que não pensamos em outra coisa, não desejamos nada além de comer. O nosso humor muda, perdemos a paciência, ficamos intolerantes e egoístas. Desprezamos os demais e nada nos é mais importante do que comer. A única diferença entre a vontade de comer e a necessidade de comer é a intensidade da fome e as suas consequências em nós, isto é, o efeito da abstinência da alimentação.
O conceito de dependência está associado à ideia de que a pessoa tenha uma necessidade que não é real para as demais, ou seja, é uma necessidade somente dela. Portanto, a dependência de comida não é classificada como tal visto que todos a possuem. Contudo, a dependência em algumas substâncias, que acontece com apenas parte das pessoas, é vista como dependência.
A ideia de dependência também está associada à ideia de algo ruim, negativo e prejudicial, ainda que não haja um conceito bem estipulado do que é ruim, negativo e prejudicial. Este conceito é baseado nos preconceitos que as pessoas compartilham e se perpetuam através das repetições e hábitos tais como as ideias e os comportamentos culturais.
As necessidades fisiológicas, sendo objetivo e necessidade de quase a totalidade dos indivíduos, é tida como algo bom, positivo e benéfico sendo, portanto, o oposto da dependência. Dessa maneira, as necessidades fisiológicas não se enquadram neste conceito. Estas ideias mostram como os conceitos criados pelas pessoas deriva da opinião pública de uma determinada sociedade provado que os conceitos são mutáveis. Além disso, a falta de definições claras e precisas provam como tais ideias são abstratas e sem fundamento uma vez que não possuem argumentos que as sustentem.
Assim, o que é rotineiro e comum para a maioria é visto como normal e, tendo normal como padrão, comum e aceitável, tais rotinas não se enquadram no conceito de dependência que é necessariamente fora do padrão. Então, se a maioria possui um determinado sentimento, uma determinada ideia e um comportamento próprio, todos esses serão vistos como normais, aceitáveis e dentro das regras (padrão). Como a dependência é necessariamente um comportamento fora do padrão, mesmo que sejam os mesmos comportamentos, são tidos como diferentes.
As dependências mais fáceis de serem identificadas são as visíveis enquanto as emocionais são mais difíceis de serem percebidas. Vemos o comportamento das pessoas bem como o que consomem e conseguimos identificar como a pessoa se sente com um determinado objeto. Por isso identificar dependências de substâncias ser fácil e clássico enquanto as dependências emocionais são difíceis de serem vistas.
Como a dependência é a sensação de necessidade, a sensação da pessoa é de sofrimento na ausência do objeto de que depende. Com objetos visíveis, identificamos o alívio do sofrimento da pessoa ao ter tal objeto e concluímos ser dependência. Já para dependências emocionais, o objeto é uma sensação gerada a partir do comportamento de outra pessoa, portanto, não é visível, não é tátil nem audível. É algo que a pessoa sente e não percebe.
Sendo o vício um comportamento de compulsão onde a pessoa deseja mais e mais do objeto de que necessita, identificar pessoas que se acalmam e se aliviam com objetos palpáveis é fácil. Contudo, recebemos bem-estar por outras pessoas e isso é tão importante para nós que a ausência de sociabilização é tida como tortura tamanho sofrimento que causa àquele que não possui relacionamentos afetivos com outros. Dessa forma, pode-se verificar que precisamos/necessitamos de outras pessoas e sem elas sofremos. Nesta perspectiva, somos dependentes de outras pessoas, contudo, por ser um comportamento comum, não o vemos como ruim e, sendo assim, não é um vício e não é uma dependência.
Um viciado em álcool sofre com a ausência da reação do álcool em seu organismo. O mal-estar é forte o suficiente para ele buscar um pouco da droga visando sentir alívio ou bem-estar. O mesmo ocorre com pessoas que possuem Transtorno Obsessivo Compulsivo em que não consegue pensar em outro assunto e só se alivia quando tem determinado comportamento. Interessante perceber que essa reação acontece com os apaixonados que não pensam em nada além da pessoa amada e não querem nada mais do que ficar com a pessoa amada bem como sentir a correspondência desse amor.
A dependência é:
- Pensamento em apenas um objeto;
- Desejo intenso pelo objeto;
- Insatisfação com qualquer coisa além do objeto;
- Alívio ou bem-estar ao ter o objeto de desejo.
Com a sensação de alivia ou de bem-estar, a pessoa cria um feedback positivo sobre o comportamento que a levou a se sentir bem. Assim, fazer tudo o que ela fez para conseguir mais um pouco do objeto de desejo é reforçado e a pessoa acredita/sente ainda mais que manter este comportamento é bom visto que possui o resultado aceitável ou satisfatório.
- Com a boa sensação ao ter o objeto, a pessoa acredita que tê-lo é a forma de ser feliz;
- O objetivo da vida é ser feliz (todos buscam alguma satisfação)
- Portanto, manter o comportamento que conquistou o resultado desejado é reforçado e mantido.
Enquanto o alcoólatra precisa de álcool para se sentir melhor, o apaixonado precisa da pessoa amada para se sentir em paz ou feliz. A diferença está que no primeiro caso nem todos desenvolvem a dependência; uma parte da sociedade possui tal dependência; e é algo visível. Já no segundo caso é comum na sociedade, sendo a paixão não necessariamente romântica, mas qualquer sentimento intenso que faça a pessoa pensar em um objeto constantemente ( veja mais Amor X Paixão – colocar link de 13/nov/2024); grande parte da sociedade experimenta tal sensação; é invisível, então é fácil de passar despercebido. Daí que o apaixonado não percebe que está apaixonado, mas são as pessoas de fora que notam a alteração em seu comportamento compulsivo. Por desejar romance, romantizam a paixão.
| Dependentes | Apaixonados | Pessoas “comuns” |
Pensamento em um objeto constantemente | sim | sim | não |
Desejo intenso pelo objeto de desejo | sim | sim | Quando em muita falta (ex: fome) |
Insatisfação com qualquer outra coisa | sim | sim | Não. A pessoa possui várias fontes de satisfação |
Alívio ou bem-estar ao ter o objeto de desejo | sim | sim | sim |
Sensação feliz ou aliviada ao ter o objeto de desejo | sim | sim | sim |
Reforço do comportamento que gera o resultado de bem-estar | sim | sim | sim |
Buscando satisfação, aceitamos fazer o que não gostamos para conseguirmos o que desejamos posteriormente. Muitas pessoas trabalham sem gostar visando receber o salário posteriormente, o que é o objeto de desejo delas. Da mesma maneira, os apaixonados e viciados agem de forma a conseguirem o que desejam e aceitam passar por situações que muitas pessoas consideram humilhantes, isto é, acreditam que não aceitariam passar. É assim que vemos os outros: através da nossa imaginação e dos nossos sentimentos.
Essas pessoas veem as outras e s julgam com os seus próprios sentimentos e é dessa maneira que concluem se o que os outros passam é humilhante ou não e isso é importante porque uma das maneiras de identificar que o outro está sob uma compulsão é justamente vendo as humilhações que ele suporta passar para conseguir o que deseja. Por isso a crença popular é tão importante: é essa conjuntura de crenças que fazem as pessoas julgar como dependência ou não sem que haja definições ou mesmo debate sobre os assuntos. As pessoas simplesmente julgam sem sequer estudar o assunto e é dessa maneira que classificam se o outro é dependente ou não.
Como apenas uma parte da sociedade está sob o efeito da paixão romântica, esta é tida como uma alteração fisiológica (anormal). Contudo, como não há um objeto exógeno facilmente identificável pelo qual se cria a dependência porque não vemos as pessoas como objetos de dependência, concluímos não ser uma dependência. Ainda assim, graças à falta de pensamento argumentativo e lógico do ser humano, conseguimos criar a ideia de dependência emocional quando uma pessoa precisa de uma resposta especifica de outra e aceita passar por situações humilhante para tal exatamente como na paixão e no vício. Qual é a diferença? Quem vê de fora.
Quem enxerga de fora e vê uma pessoa que se esforça para conquistar a outra e fazê-la feliz ou ter uma retribuição afetiva, apesar de ser uma obsessão, vê amor em vez de paixão e julga ser amor. Sendo o amor bom (conforme a crença popular) e a compulsão ruim, conclui-se ser algo bom. Ainda assim, assassinatos por amor acontecem ao redor do mundo constantemente provando o comportamento humilhante e perigoso que a pessoa apaixonada pode ter tal como um viciado que aceita fazer qualquer coisa, incluindo se arriscar, para conseguir mais um pouco do seu objeto de desejo. Alguns furtam, alguns roubam, alguns matam. Exatamente como um apaixonado que não pensa.
Quem enxerga de fora e vê uma pessoa que usa demais uma substância e se sente mais tranquila ao tê-la, vê dependência química. Visto que a julgadora não precisa da mesma substância assim como muitas outras, a necessidade da substância para alcançar um estado emocional melhor é visto como dependência.
Quem enxerga de fora e vê uma pessoa que aceita condições que a julgadora considera humilhantes para conseguir uma resposta afetiva de outra pessoa, vê dependência emocional. Mas, quem não aceita passar por situação humilhante para conseguir um pouco de afeto? Um pouco de carinho? Um pouco de atenção?
Crianças brigam e se machucam para conseguirem atenção dos pais ou de outras pessoas que estimam num comportamento NORMAL. O mesmo comportamento, mas com julgamento diferente pelo simples fato de que percebemos como comum.
Quem enxerga de e vê uma pessoa que não se aquieta enquanto não fizer o seu ritual compulsivo vê uma pessoa compulsiva visto que a julgadora não possui tal comportamento.
Resultado: o julgamento do que é compulsivo ou não; do que é bom ou não; é a pessoa de fora que não possui as necessidades daquele que está sob a compulsão. São essas pessoas que analisam as outras e comparam com os seus ideais, com o que acredita ser normal, com o que é comum. Se o comportamento do outro lhe gerar algum prazer, então é tido como bom e, sendo bom, não pode ser compulsivo. Se o comportamento do outro lhe der pena ou medo, é classificado como uma dependência.