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Hierarquia

Restritos aos sentidos do corpo e dependentes da visão, nós enxergamos tudo em duas dimensões e, por consequência, nós pensamos dessa forma. Ainda que vivamos com uma terceira dimensão de cima ou baixo, nós não a enxergamos conscientemente. Subimos e descemos escadas, elevadores, ruas e ladeiras, mas não colocamos tal informação em nossos discursos. Ao apontar um caminho, podemos até falar que deve-se subir ou descer uma rua ou degraus, porém nós vemos em ir para frente ou para trás (uma dimensão) ou para um lado ou para o outro (outra dimensão).

Além disso, vivemos sob o efeito do tempo, mais uma dimensão. Como não a enxergamos, nós não a colocamos em nossos planos ou perspectivas. Um dos exemplos de que pensamos assim é a ideia de que envelheceremos e teremos ainda a nossa capacidade atual. Acreditamos que seremos fortes e capazes tal como somos agora e que só acumularemos habilidades por as desenvolver mais. Mesmo vendo que a velhice destrói o corpo, a nossa máquina produtiva de qualquer coisa, nós ignoramos este fato e mantemos a fé de que continuaremos a aumentar a nossa força e produtividade. Vemos os velhos se decomporem ao longo dos anos, as doenças serem as novas companhias permanentes e as dificuldades aumentarem. Nos outros. não em nós.

Prova de que não acreditamos que tudo isso acontecerá conosco é a nossa crítica constante aos velhos que no passado foram tão produtivos e hoje sucumbem a um corpo moribundo. Nós não queremos entender o motivo de eles precisarem de tanta cuidado e serem tão fracos, não aceitamos que isso aconteça e sempre nos surpreendemos negativamente quando o nosso corpo deixa de ser tão bom quanto um dia já foi. Começamos a ficar no vácuo ao planejarmos atividades que fazíamos com facilidade quando novos e que começam a ser difíceis e nos revoltamos por não sermos mais tão bons quanto um dia fomos.

Odiamos o que a velhice tira de nós embora continuemos com esperança de que a vida melhorará conforme aprendemos mais ou nos desenvolvemos mais.

O fato é que não sentimos o tempo. Sentimos o que acontece com os nossos corpos ao longo do tempo e, ainda assim, negamos e evitamos pensar no assunto tanto quanto o possível. Não nos preparamos para uma velhice de dores e doenças, nós imaginamos que teremos a saúde boa que temos agora, que os problemas que temos serão resolvidos e que a vida será ainda melhor no futuro. Exatamente o oposto do que costuma acontecer.

Este pensamento contrário aos fatos é  explicado em A confusão de um pensamento, Por que confundimos desejos com realidade? e A estupidez humana.

O pensamento que temos é derivado do cérebro que possuímos, a maneira como ele funciona e os sentidos que temos. Ainda que tenhamos vários sentidos, nós sentimos mais os mais intensos e estes são os físicos. Podemos ter um mal-estar sutil que não conseguimos entender ou explicar e, por não sabermos o que é facilmente conseguimos afirmar que não seja real, que é somente invenção. No entanto, não conseguimos fazer o mesmo quando o som está alto ou a luz é forte. Os sentidos físicos são facilmente estimulados e berram dentro de nós numa grande intensidade que nos impede de acreditar que sejam inventados. Então só nos resta confirmar que são verdadeiros.

Este é um dos motivos pelo qual pessoas com corpos mais sensíveis que as demais ou com funcionamento incomum sofram mais. O que elas sentem como um grande estímulo não percebido pelos demais. Enquanto ela sente como algo real, os outro afirmam que não é verdade porque eles não sentem o mesmo e este quadro é visto em pessoas sensíveis e com distúrbios fisiológicos.

Um cérebro que não funciona adequadamente pode ouvir sons que não existem ou ver imagens que não são reais. A pessoa tem certeza de que as ouve e as vê porque o seu cérebro as identifica tal como cérebros normais que identificam sons e imagens reais. Como convencer uma pessoa de que o que ela enxerga não é real? De que o som que ela ouve não existe se o corpo dele os sente? Da mesma forma, uma pessoa que tem baixa sensibilidade ao frio se sente bem com um short e top num clima chuvoso com 15°C enquanto as demais, mais sensíveis ao frio, se encasacam por sentirem frio. Como convencer essas pessoas com frio de que o frio não é verdadeiro?

Este é um dos grandes problemas que o ser humano enfrenta por acreditar que apenas os seus sentidos estejam certos e que os demais estejam errados. Quando o indivíduo credita estar certo acha que os demais devem ser como ele e que o que eles sentem não seja verdade. Assim, esta pessoa ignora, despreza e invalida as sensações do outro fazendo-o se sentir incompreendido, sem valor e oprimido, afinal, ele “está” errado e deve ser o “certo”. É por isso tanto que muitas doenças psiquiátricas são um bicho de 7 cabeças sem qualquer explicação. Como o ser humano ignora o que desconhece e desconhece o que acontece na cabeça de um doente psiquiátrico, deduz que não há nada diferente e que, então, a pessoa deva agir de forma normal às demais ignorando, desprezando e invalidando os seus sintomas e sensações. A pessoa não apenas sofre com a sua doença, mas com todos que não a compreendem e exigem que seja uma pessoa normal, sentindo o que eles sentem porque “o que eles sentem é real.”

O nosso pensamento tem uma estrutura básica do corpo humano e é diretamente influenciado por nossos sentimentos. Se desejamos algo, acreditamos que este algo seja real e o pensamento que temos é de que seja real. Sem qualquer fundamento prático ou lógico, concluímos ser real porque assim desejamos que seja. Veja mais em A confusão de um pensamento e Por que confundimos desejos com realidade?

Por sermos muito dependente da visão, a nossa maneira de interpretar a vida é baseada na maneira que a olhamos. Então, se vemos em duas dimensões, pensamos em duas dimensões. É fácil imaginarmos uma imagem desenhada, em duas dimensões. Difícil é imaginar uma imagem em 3 dimensões ou em mais porque não a vemos de fato. Ademais, vemos as superfícies dos objetos, não o interior. Contudo, existe o interior, porém por não o vermos nós não o levamos em consideração. Assim, ao imaginarmos uma pessoa, pensamos em braços, tronco, pernas, cabeça, cabelos, roupas… Não pensamos em fígado, rins ou cérebro.

A visão de exames de raios-x, tomografia ou ressonância é estranha para nós. Ainda que sejam em duas dimensões, cima, baixo, lado e outro lado, vemos o interior do objeto analisado e a imagem que precisamos ter na cabeça é a conjuntura das imagens vistas pelos olhos como se fossem várias folhas de um livros postas uma ao lado da outra até formar o livro em si e nós precisamos ver o livro, não as páginas.

Ademais, como os nossos sentimentos são a essência de nosso pensamento, a nossa maneira de pensar é derivada do que desejamos e evitamos. Então, se queremos ser melhores que alguém, passamos a acreditar que existem pessoas melhores e pessoas piores, pessoas acima e pessoa embaixo e assim criamos o primeiro esboço de hierarquia: há quem fique no topo e quem fique na base.

Além disso, acreditamos que quem produza mais tenha mais, logo estas pessoas também estão no topo. Ademais, percebemos que o poder social afeta a posição social de uma pessoa e, se acreditamos que existam pessoas em cima e embaixo, as que possuem mais relevância e evidência são as que estão no cume enquanto as anônimas estejam na base.

A relação que temos com as pessoas varia com o que desejamos, o que evitamos, o que oferecemos, quem somos, o poder que temos, o poder que elas têm… É uma grande soma de fatores e interpretações que nos levam a sentir que somos mais ou menos que alguém.

Também é comum um pensamento de que quem é melhor ou que está acima é uma pessoa que deve ser servida pelas demais. Este pensamento nos leva a compreender o mundo como uma pirâmide onde poucas pessoas poderosas estão no topo e que devem ser servidas e muitas estão na base, servindo. Se queremos ser servidos, ou sermos melhores, ou estamos no topo, ou sermos mais poderosos ou mais fortes, nós concluímos que precisamos estar no topo e que não queremos estar na base.

O pensamento dualista do ser humano onde exista apenas duas opções necessariamente opostas nos faz acreditar que há quem mande e quem obedeça, ou seja, quem ordene e que sirva. Se a pessoa serve, está na base da pirâmide, é uma anônima, sem importância, menor e pior. Do outro lado temos a pessoa que é poderosa, grandiosa, forte, poderosa e servida. É assim que criamos a ideia de hierarquia: uma estrutura bidimensional que vai de cima para baixo, ou de baixo para cima dependendo de onde se começa, em que os de cima mandam e os debaixo obedecem.

Visto que obedecemos os mais fortes ou mais habilidosos por medo de sermos prejudicados de alguma forma, nós concluímos que “TEMOS” de obedecer porque não queremos o prejuízo. Não queremos o conflito ou a luta porque corremos um grande risco de perdermos. Então obedecer é a melhor opção e uma escolha instintiva, reativa e não pensada. Se não pensamos sobre isso, não sentimos que ela exista e concluímos que ela realmente não existe. Não escolhemos obedecer. Nós obedecemos por falta de opção. Assim nós fazemos parte da base da pirâmide por falta de opção e, sem “podermos” escolher, o sistema hierárquico também não é uma opção, mas uma forma de enxergar como as pessoas se relacionam, como a vida é organizada.

A sensação de não termos opção nos faz sentir que é uma estrutura rígida e imutável. Podemos tentar subir na pirâmide, mas sempre enxergaremos a vida como uma pirâmide, jamais de outra forma.

Todo esse pensamento é pautado em como nós nos sentimos em relação aos outros. se sentimos que somos mais, estamos em cima, caso contrário, em baixo. Nós percebemos que todos colaboram de formas diferentes e que a base da pirâmide seja uma área (com duas dimensões). Enxergamos a dimensão vertical e horizontal, não a profundidade. Ainda que a enxergássemos, há outras dimensões que não percebemos e que influenciam todo o esquema organizacional social aumentando as dimensões que se interinfluenciam e geram o resultado final.

A ideia de hierarquia também é derivada da vontade das pessoas de estarem em cima. Uma vez em cima, acreditam que estejam em cima sobre todos os assuntos como se um médico, uma pessoa que está acima de muitas outras, fosse uma pessoa acima das demais em todos os assuntos quando, na verdade, é só na parte médica. Ele pode ser uma péssima pessoa, mentirosa e briguenta ao mesmo tempo que é um médico. Ser médico não faz dele uma pessoa melhor que os demais, apenas uma pessoa melhor que as demais no conceito médico. Contudo, o orgulho das pessoas, uma endemia derivada a percepção instintiva do ser humano, faz com que acreditem que sejam mais e melhor do que as demais. Então, quando a pessoa consegue um posto mais alto em alguma hierarquia, ela toma esse posto para a sua vida mesmo fora do sistema onde conseguiu tal posição. Ela quer ser chamada de “doutora” ou outros pronomes de tratamento para satisfazer o seu orgulho que lhe faz acreditar estar no topo da hierarquia por ser mais e melhor que as demais e age de modo a se sentir superior às demais.

O apego à posição social que aprecia faz com que muitas pessoas ajam de forma inadequada à situação como um juiz do poder judiciário acreditar que valha mais do que qualquer outro cliente em uma loja de roupa. Na loja o juiz é somente um cliente. Ele é juiz apenas e exclusivamente quando empregando o seu cargo funcional como empregado. Contudo, muitas pessoas pensam como este exemplo acreditando que o juiz tenha real poder fora do seu ambiente de trabalho e, por isso, o trata de maneira como se estivesse em seu ambiente trabalhista.

É dessa maneira que as hierarquias, que existem dentro de uma organização social bem definida, é levada ás ruas e para a população sem que de fato existam nestas circunstâncias. Tal como uma mulher que é chefe em seu trabalho, esposa e mãe em casa não é chefe em casa, o juiz não é juiz em nenhum outro lugar. Porém, presos nessa forma de pensar em que podemos legar o nosso posto mais alto para qualquer outro âmbito da vida, nós agimos dessa forma e, com tantas pessoas consentindo e concordando com essa perspectiva, ela é tida como normal, aceitável e correta. Mas ela é correta?

Muitas coisas do passado são tidas como erradas atualmente. Torturar pessoas para salvar as suas almas do diabo, queimar “bruxas”, espancar cônjuges e escravizar negros eram legais, normais, aceitáveis e condutas corretas. Não são mais. Então, se o que era certo no passado não é mais, qual a chance de o que seja tido como correto hoje seja revisto e julgado como errado no futuro?

Nós interpretamos a vida como ela é ou a fazemos como queremos que ela seja?

Todas as moléculas de água formam um grande oceano que está em todos os lugares. Mares profundos, rasos, revoltos, calmos, escuros, claros, verdes, transparentes, azuis, com ondas pequenas, ondas grandes, influenciando tempestades ou céu aberto é o resultado de todas as moléculas de água. Uma única parece não ter importância para o todo, mas o todo depende de todas as moléculas.

São essas moléculas de água que criam todas essas variações de mares, todos os oceanos, todas as características de faunas, floras e outros reinos que habitam nessas águas ou fora delas porque os oceanos influenciam e até determinam climas que estão distantes do seu contato. Chuvas e furacões são resultados de várias moléculas de água em uma configuração determinada que gera essas chuvas e furacões.

Como moléculas de águas que determinam o clima no planeta inteiro, hora em cima, hora embaixo, hora do lado, hora em outro ponto do globo, nós estamos imerso num sistema social multifacetado que não compreendemos. Nós nos apegamos à ideia de hierarquia por ser uma maneira fácil de entender, uma forma simples de tratar as pessoas e porque desejamos levar o nosso posto mais alto a todos os lugares que formos para nos sentimos superiores, fortes e termos pessoas que nos satisfaçam. É um desejo misturado com incapacidade de perceber o todo que nos leva a concluir que este pensamento está correto.

Presamos pelo simples e fácil porque não queremos gastar tempo, atenção ou esforço numa resposta adequada e de fato correta. Queremos apenas saber como devemos agir, o que devemos fazer e como nos comportar para economizar esses preciosos recursos que, muitas vezes, sequer os temos

 

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