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Família “tradicional”

Tradicional vem de tradição, o que significa recorrência de um evento. Em outras palavras, algo que se repete. Um exemplo disso são os feriados e festas anuais que são tradicionais. Todos os anos essas festividades se repetem e isso dura mais que uma geração, sendo passada de uma geração para outra.

Sendo assim, famílias tradicionais são as que repetem comportamentos das famílias anteriores (de origem) e a primeira observação que se tem é que as famílias são feitas a partir de um homem e uma mulher, gerando o descendente, o qual é a geração seguinte. Contudo, apenas a procriação da espécie não é suficiente para a definição de família, uma vez que há muitas pessoas que não conhecem os seus genitores ou não tiveram/têm convivência com estes. Nesta situação a família dessas pessoas pode ser considerada desconhecida, já que não se sabe quem são os seus pais, ou família ausente, uma vez que não há a convivência.

Esta definição de família para o ser humano não é suficiente. Embora seja a definição criada por pessoas (genitores e prole), na prática temos outra definição: quem convive conosco com funções sociais familiares. Isso significa que há pré-requisitos para que identifiquemos uma família como tal. A simples convivência não é suficiente para definir um grupo de pessoas como família. Se assim fosse, internatos seriam famílias numerosas e pessoas que moram com amigos teriam uma família peculiar. Além da convivência é preciso de papel familiar, ou seja, pessoas que se relacionem como parentes (responsáveis, filhos, tios, avós e etecetera sempre havendo hierarquia de poder uns sobre os outros). A questão que surge é: como ou quem define estes relacionamentos? As próprias pessoas. São as próprias pessoas que determinam quem são sua família porque são elas quem sentem estes papéis no cotidiano. É por conta disso que cada um possui uma definição de família diferente.

A percepção dos relacionamentos familiares engloba várias características, como a sensação de amparo e gratidão, bem como a do dever de ajudar e orientar. Isso significa que a pessoa se sente presa (emocionalmente), por possuir deveres, embora sinta-se bem ao mesmo tempo, por ter apoio e auxílio. Essa é a mistura fundamental de uma família, essa dualidade, esse relacionamento de interdependência entre os integrantes.

Como o ser humano possui a característica de sentir mais compaixão e atração por pessoas consanguíneas, este fato (consanguinidade) acaba sendo implementado na definição de família. Porém, basta questionar famílias com membros adotivos que essa característica deixa de ser essencial e passa a ser apenas normal ou comum. isso mostra que também é comum desenvolvermos compaixão por aqueles com quem convivemos e por conta disso laços são criados e mantidos sem que haja a consanguinidade tais os filhos adotivos e os próprios cônjuges. 

Devido à dinâmica dos relacionamentos na família afetarem a estrutura dessa, essa dinâmica passa a ser importante na própria definição de família. Para um grupo parental que convive e que todos brigam e gritam, estas características, de brigar e gritar, são normais e, portanto, comuns na família. Se essa característica é frequente, ela passa a ser tradicional e, se os descendentes as repetem, pode-se dizer que é tradição familiar. Portanto, tem-se que a família tradicional dessa linhagem familiar de gritos e brigas.

Observando rapidamente a história, desde história do mundo, história local, história de raízes familiares e fofocas sobre vizinhos, percebemos os inúmeros casos de infidelidade sexual e geração de descendentes com outras pessoas além do cônjuge. Um comportamento comum, normal, frequente e, portanto, tradicional. Grupos familiares compostos por algum dos integrantes que foi embora (abandono), algum dos integrantes gerados a partir de alguém de fora (traição), com algum dos integrantes que não teve filho, algum integrante que é parente indireto do integrante mais novo (avós, tios, primos…), são famílias por conta de seus relacionamentos familiares (que definem serem família por sensação emocional). A primeira “tradição” existe, já que todos nasceram a partir de um homem e uma mulher, e a tradição da espécie, de abandono, traição e junção com algum membro parental(consanguíneo ou social) distante do mais novo, também existe. Dessa forma, esses arranjos familiares também seguem a tradição da espécie.

Além disso, esses grupos familiares são comuns na sociedade, mostrando que este tipo de comportamento é tradicional. Logo, famílias assim são tradicionais.

Apesar disso tudo, que percebemos no dia a dia, insistimos em alegar que a família tradicional é composta por genitores fiéis (sexualmente) e descendentes. Por que fazemos isso? Por simplicidade. É mais fácil imaginar e lidar com situações mais simples e com menos variáreis do que com a realidade, cheia de variáveis e desconhecimento, com os relacionamentos. É mais fácil impor o dever de cuidar da prole aos seus genitores; é mais fácil imaginar uma família com poucos membros porque há menos relacionamentos e, então, menos variáveis (o resultado é mais exato); é mais agradável imaginar que os pais cuidam de seus filhos; é melhor imaginar que ninguém ficou sozinho e pediu para entrar numa família; é mais gostoso imaginar que avós não precisem morar com seus filhos e netos; é mais fácil imaginar uma família com papéis sociais bem definidos (pai ou mãe – responsáveis – e filhos – sob guarda). Essa família tradicional que tanto se fala não é de fato a família tradicional, mas a família que consideramos ideal dentro de nossos desejos e capacidade de compreensão. Tudo diferente disso nos gera incômodo e normalmente não sabemos como reagir e prova disso são os antigos bastardos, as mães solteiras, as segunda-famílias… Tudo isso existe aos montes, são comuns, normais e tradicionais. Porém, por não sabermos como lidar com tudo isso, nós tentamos limitar e reduzir estes fatos, desde a não aceitação de bastardos (no passado), caçoar de mães solteiras e cochichar sobre homens que possuem outras famílias. Todos eles seguem a tradição da espécie, mas não satisfazem a vontade comum da simplicidade familiar, motivo pelo qual são alvos de preconceito e desvalorização social.

A prática mostra que a família tradicional é bagunçada e não segue essa definição simples. Quantas mães possuem filhos de pais diferentes? Quantos pais possuem filhos com mães diferentes? Quantos filhos possuem a guarda compartilhada, não morando nem com o pai nem com a mãe, mas com ambos de tempos em tempos? Quantos amigos moram juntos para reduzirem as despesas? Quantos pais são separados, rompendo com a definição inicial de família por não ter a convivência? Vemos isso o tempo inteiro e, na prática, sabemos que isso tudo é o tradicional. Apesar disso, ao se falar sobre a quebra dos valores da família “tradicional” as pessoas ficam com medo porque elas escutam “tradicional” e interpretam “ideal”. Dessa forma, elas têm medo que os seus ideais, tal como a família ideal, sejam quebrados/rompidos/bagunçados, o que lhes dá insegurança, levando o medo, o qual é uma sensação muito incômoda. (Para melhor compreensão sobre as relações entre crenças e sentimentos veja o livro Hipocrisia: certa ou errada? Boa ou ruim? Por quê?”)

Além da família tradicional pode-se analisar as expectativas do ser humano. O comum é sentirmos atração por outras pessoas e ter vontade de trocar de parceiro romântico. Às vezes essa vontade é tão grande que agimos por impulso e nem conseguimos evitar. Traições e relacionamentos fora do socialmente aceito (com outra pessoa além da parceira/namorada/cônjuge) são comuns na espécie há milênios mostrando que este é o tradicional, normal e comum.

Ao longo da vida é comum termos diversos relacionamentos românticos, mostrando que a monogamia não é comum ou tradicional ao longo da vida. Sabemos que os outros também o fazem. A questão que surge é: se nós gostamos de trocar de parceiros, se sabemos que os outros também apreciam essa troca (cada um dentro do seu tempo), como exigir ou esperar que ele não o faça ao longo da vida? Na verdade o mais óbvio é esperar que o cônjuge tenha vontade de trocar de parceiro porque isso é o natural, comum, normal ou tradicional da espécie. Porém, por ser difícil ou impossível lidarmos com essa realidade, nós tentamos limitar o comportamento da espécie para evitar que essa característica se concretize. Isso significa que essa família “tradicional” não tem nada de tradicional, ela é o ideal que temos em nossas mentes para saciar as nossas vontades.

Quando fala-se “família tradicional” quer-se dizer família ideal e, por se tratar da família ideal, questionar a família “tradicional” é percebido como crítica, uma ameaça e, por tal, deve ser eliminada para que nos sintamos bem e seguros novamente. Por isso que falar que a família tradicional é diferente do que julgamos ideal causa tanto conflito.

Os fatos são que as famílias tradicionais são famílias normais, comuns, e o normal do ser humano é não ser monogâmico, não gostar de todos e ter conflitos. Nós somos o tradicionais em (quase) tudo

 

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