Quando a pessoa se sente impotente, naturalmente se coloca como vítima e passiva de uma situação. A própria forma de falar demonstra isso, quando a pessoa se coloca como agente da passiva. Frases como “não me falaram”, “o médico não avisou” ou “não fui informado” mostra exatamente como a pessoa se sente perante a situação.
Ao se colocar na forma passiva, automaticamente coloca a responsabilidade da situação em outra pessoa ou coisa, o agente que pratica a ação que cria a situação sobre o agente da passiva, quem recebe a ação, dando a ideia de vítima, de impotência, de ausência de ação ou atitude. Dessa maneira, a pessoa tira a responsabilidade própria sobre o problema (situação que incomoda), já que não é o agente que o cria, eximindo-se da culpa ou responsabilidade das consequências negativas (desagradáveis) decorrente da ação bem como determina quem acredita quem seja o culpado por tais e que deva ressarcir por isso.
Isso acontece porque as pessoas se preocupam com quem seja o culpado por tal problema, uma vez que acreditam que este deva resolvê-lo. Assim, não ser o culpado do problema faz com que elas não tenham (a sensação de) responsabilidade de resolver, amenizar ou criar uma solução para a situação que incomoda, o que é uma posição cômoda, já que a pessoa não precisa se esforçar ou fazer algo para mudar o quadro em que se encontra.
Um exemplo disso é quando um médico receita um medicamento para uma paciente e este passa a ter efeitos indesejados. O paciente critica o médico por tai efeitos, alegando que o médico não avisara sobre os efeitos. Contudo, tais efeitos estão na bula do medicamento, o qual vem junto deste. É obrigação do médico avisar todos os detalhes do medicamento, lendo a bula deste para o paciente, ou o paciente também é responsável por tomar o medicamento e pela possibilidade de ler a bula e saber mais sobre o que ingere e põe em seu corpo?
Outro exemplo é quando a pessoa se automedica, seja com medicamentos liberados (sem necessidade de receita médica, como dipirona e paracetamol) ou toma uma dosagem superior à recomendada pelo médico ou pela própria bula, e responsabiliza o medicamento pelo eu mal-estar alegando que o remédio seja ruim. Ouvir expressões como “o remédio me fez mal” demonstra, novamente, a passividade da pessoa diante da situação. Embora ela tenha escolhido o medicamento, tenha escolhido tomá-lo e qual dose tomar, o fato dela não se sentir bem é atribuído ao medicamento para que não sinta culpa de seu próprio mal estar.
Em locais que falam sobre espiritualidade já ouvi “a verdade nos foi negada” (se referindo a ideias espiritualistas ou sobre o universo). Mais uma vez mostra a impotência da pessoa que fala sobre o assunto ao qual se refere. Neste caso, a verdade nos foi negada mesmo? Quando? Como? Por quem? Ou será que nós é que não temos capacidade de entender ou saber a verdade? Nos colocar como impotentes para conhecer esta verdade a qual foi referida nos responsabilizaria por essa agonia que temos de não saber tudo, como se fosse a nossa culpa. Contudo, não desejamos essa sensação, então nos colocamos como agentes da passiva para deixar claro que não é por nossa culpa, mas por algo ou alguém externos a nós, mesmo que o desconhecemos. Ademais, há pessoas que sabem mais e pessoas que sabem menos, mas nos colocar como passivos nos tira o peso da culpa das consequências. Dessa maneira, as pessoas que sabem menos e, por isso, possuem menos resultados promissores, não são responsáveis por suas situações menos promissoras ou por seus poucos sucessos. Em suma, delegamos a culpa sobre algo que consideramos ruim a outro para não termos de lidar com essa sensação emocional, a qual nos incomoda bastante.
Ao ouvir relatos históricos, também é possível achar o narrador falando que o rei, a rainha ou outro nobre não fora treinado para ser o rei, rainha ou ter outra função que lhe fora delegada. Neste pensamento observa-se que a responsabilidade de agir ou ser o nobre determinado não era da pessoa em si, mas de outrem. Dessa forma, as suas decisões ruins não lhe eram de sua responsabilidade e, então, não foi a sua culpa.
A essência do pensamento é:
O culpado pelo problema deve alterá-lo e ressarcir as vítimas. Portanto, é ele o responsável por se esforçar e fazer algo para mudar a situação.
A vítima deve ser ressarcida de seu prejuízo, ganhando algum benefício. Ela deve esperar o seu benefício.
Como ninguém deseja se esforçar ou fazer algo diferente, todos desejam ser a vítima para ganhar o benefício.
Dessa forma, há uma disputa para descobrir quem é a vítima, visando ganhar o benefício (todas as pessoas querem ganhar algo ou conseguir algo; é a motivação do ser humano).
A estrutura do pensamento, da forma de falar e de agir revela que pensamos dessa maneira. Por isso as pessoas demonstram a preocupação de se mostrarem como vítimas e passivas, pois desejam ganhar algo ao ocuparem esta posição.
Exemplos de que o povo é vítima de políticos, alguém é vítima de golpe ou de mentira também mostram tal realidade. Contudo, se a vítima é considerada ingênua ou burra, a situação munda, já que a sociedade culpará a própria vítima e, dessa forma, não poderá ganhar benefício de ninguém uma vez que ela (a sua ingenuidade ou burrice) fizera a ação de confiar (comportamento anormal/incomum) em vez de desconfiar (comportamento comum/padrão e esperado).
Se a vítima é considerada como burra, estúpida, fraca ou outras ideias que denotam um posicionamento de inferioridade e vergonha (características que a sociedade não aprecia), sendo a própria culpada pela sua situação de vítima, a mesma se calará para não expor a sua própria vergonha. Muitos casos de estupro, de perder briga ou apanhar são calados exatamente por tal motivo. A sociedade considera que a culpa seja da vítima e, portanto, ela não conseguirá benefício de ninguém. Se não há como ganhar nada, para que expor uma situação que faz a pessoa se sentir humilhada e incomodada?
Para ser uma “boa” vítima a pessoa deve ser considerada uma boa pessoa, ou seja, que faz e possui características prezadas pela sociedade ao seu redor. Pessoas com moralidade condenável pela sociedade não consegue o seu carisma e, sem este, ninguém se penaliza com a sua fraqueza ou impotência, com a sua situação de vítima e, sendo assim, ela não consegue o poder social necessária para exigir desculpas e ressarcimento pelo seu dano.
Uma pessoa ser furtada, por exemplo, costuma receber a culpa pelo furto. Nesta estrutura de pensamento, a raciocínio funciona assim:
As pessoas buscam formas de conseguirem o que desejam da forma mais fácil.
Furtar é uma maneira de conseguir um objeto de forma rápida.
Furtar é algo que as pessoas querem fazer.
Muitas pessoas fazem. É comum.
Então devemos ficar alertas para que não sejamos alvos de furtos.
Ações que desejamos fazer (ainda que não façamos) ou que sejam corriqueiras não são vistas como exceções, ou seja, elas são a norma, o normal e comum. Portanto, para não sermos alvos de tais ações cotidianas nós somos os responsáveis por nos mantermos alertas para evitá-las.
Outro exemplo disso é de uma pessoa que anda de noite, sozinha num lugar que possui muitas pessoas que brigam e que tenham armas(local violento). Se ela for vítima de violência a população local falará que a culpa fora dela por ir a um lugar violento num momento mais propício à violência. O ponto de visto da comunidade é de que a vítima deveria ter previsto que poderia acontecer, uma vez que é evento rotineiro. Contudo, para quem vive em locais seguros, passear sozinho no horário que desejar é o normal e ser alvo de violência seria incomum, ou seja, a pessoa não teria como prever que poderia ser vítima, logo ela não agiu colaborando para que fosse alvo de violência.
Importante perceber que o julgamento de tais ações aceitas ou não muda com a sociedade e com o tempo. Enquanto que atualmente, no Rio de Janeiro, consideramos que os cidadãos devam prestar atenção para não ter os seus pertences roubados (pois é algo natural/comum), essa mesma vigilância era necessária para que mulheres não fossem estupradas séculos atrás. As mulheres eram tratadas de outra forma e algum homem era o responsável por elas. Então, se alguma “desse o mole” de sair desacompanhada de algum homem (o protetor) outro poderia pegá-la e fazer o que desejasse, como se fosse um furto na atualidade. O fato de ter sido rotineiro ou desejável fazia com que tal acontecimento fosse normal ou comum e, então, era dever da mulher prestar atenção e não colaborar para que tal coisa acontecesse assim como é dever do indivíduo que vai a um local perigoso saber do que pode lhe acontecer e evitá-lo o máximo possível ou evitar “dar mole” para não ser furtado. Atualmente esse pensamento sobre as mulheres é absurdo. Quem sabe furtos também serão no futuro e ninguém desejará obter algo de forma ilegal, permitindo que não precisemos nos manter alertas para não perder os nossos pertences?