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Brigar ou discutir?

Brigar é disputar por algo visando ganhar. Pode ser um luta, pode ser atenção e até a “razão”. Quem briga para ter a razão visa impor a sua opinião a outros, que nada mais é do que brigar para se impor através de ideias. Briga-se para ter a razão, para provar que está certo ou que sabe mais. Briga-se para disputar a colocação de quem está certo ou é superior e conseguir ser visto como alguém correto, admirado, inteligente ou querido.

Discutir é o ato de expor as premissas, mostrar a ligação entre elas e chegar a uma conclusão, que é a opinião. Quem discute não tem o objetivo de conquistar ninguém nem convencer ninguém. Quem discute tem o objetivo de expor o seu pensamento, analisar o outro exposto e, muitas vezes, fazer o processo de raciocínio de forma conjunta, isto é, mais de uma pessoa observar as premissas, incluindo as recém-expostas, desvendar a ligação entre elas e chegar a uma conclusão.

Discute-se em reuniões para achar uma solução, discute-se pautas e ciência. Discute-se sobre opiniões, que é avaliar as premissas e o raciocínio que geraram uma determinada opinião.

Em nenhum momento a discussão tem o objetivo de provar que alguém está errado ou certo. A discussão se fecha em si com uma conclusão lógica para cada pessoa que faz tal processo.

E por que brigamos em vez de discutirmos?

O ser humano é inseguro e busca segurança, tanto física quando em outras áreas. Na mental, procuramos ideias que nos deem confiança, pois isso nos fornece a sensação de segurança. Na emocional, buscamos por situações que nos saciem emocionalmente e que provem que os nossos medos não se realizarão e, como exemplo, pode-se imaginar uma pessoa que tem medo de ficar sozinha e, para ter a sensação de que isso não acontecerá, ela busca maneiras de evitar, como um casamento ou ter círculos sociais grandes para sempre ter alguém disponível para fazer companhia e, assim, escapar da solidão.

Brigamos porque confiamos no que sentimos e no que pensamos e, qualquer coisa que pareça uma ameaça ou um ataque por não corroborar com nossas ideias ou sentimentos. Assim, entramos em pânico e ficamos com medo. Então reagimos, buscando o controle para nos afastar dessa terrível sensação e ameaçar de volta e agir com agressividade são comportamentos padrões.

Para uma mulher que não se sente boa o suficiente para atrair a atenção do namorado e manter um relacionamento com ele, ter competição é terrível. Ver que existe outra mulher, que, a seu ver, é melhor do que ela, é sentir medo de que o namorado posso deixá-la para ficar com a outra. Esta sensação de insegurança é conhecida por ciúme. Para reduzir ou acabar com tal sensação, a mulher procurar formas de evitar que essa possibilidade de ser deixada se concretize. Ela pode ameaçar a outra mulher, para impor uma distância entre ela e o seu namorado; pode exigir que o namorado não se relacione, mesmo que por via de amizade ou em conversas eventuais; pode exigir declarações de amor ou provas de compromisso por parte do namorado com mais frequência ou mais intensas… Estas são reações comuns. Na tentativa impô-las, cria-se brigas porque exige comportamentos de outras pessoas que não são espontâneos delas. Como o ser humano é resistente a mudança, costuma não aceitar de bom grado quaisquer imposições, gerando as brigas.

Neste caso específico, a mulher pode analisar-se para descobrir o motivo de se sentir dessa forma e alterar-se para mudar o seu sentimento. O artigo Razão X Emoção aborda mais o tema.

No campo mental, onde moram as ideias, quando uma ideia em que acreditamos é atacada ou ameaçada, reagimos buscando eliminar tal ofensa. Por isso que, quando ouvimos algo que não concordamos ou não gostamos, reagimos buscando impor ou convencer o outro de que a nossa opinião é a correta. É a busca pela “razão”, a briga para saber quem tem a verdade na boca. E assim as brigas acontecem rotineiramente porque o objetivo não é descobrir a verdade ou sobre a realidade, mas alegar que sabemos mais que o outro, como se fossemos melhores, maiores ou superiores. Sentir-nos assim nos dá confiança em nós mesmos, nos sentimos seguros e é isso que se busca numa briga. Desvendar a realidade não é o objetivo.

Mentiras

Brigamos, mas alegamos que discutimos. Fazemos isso porque temos o conceito de que brigar seja errado e, portanto, não deve acontecer. Desejamos ser pessoas boas, que fazem coisas boas e tidas como certas. Para tal, devemos seguir os conceitos que colaborem para tal.

Contudo, não conseguimos nos controlar em tudo e, para manter a visão sobre nós de que somos pessoas boas e decentes, que seguem as regras sociais, alegamos que o que fazemos está dentro do que é visto como bom e correto, ainda que não seja. Assim, brigamos porque é a nossa reação e não controlamos, mas por ser visto como um comportamento errado ou ruim, negamos que o fazemos.

Já a discussão é vista como algo bom e produtivo, então sutilmente mudamos o vocabulário de briga para discussão para que não sejamos vistos como pessoas que devam ser repudiadas, embora a prática continue a mesma. É uma tática de tentar conseguir um objetivo sem nos esforçarmos para mudarmos e, portanto, tudo continua igual. Esta técnica ineficaz é vista no artigo O desejo de ser saciado por terceiros: mudança de gênero nas palavra.

Sobre a ideia de debate também acontece isso. Um debate é onde se debate, discute, determinados assuntos. O objetivo é estudar o assunto para entender o motivo dele existir, bem como os problemas, e propor soluções. Esta definição deixa claro que o debate não leva em consideração as pessoas que falam, mas as ideias a respeito do assunto analisado. Porém, os debates vistos não são assim. Nos tidos “debates” as pessoas brigam visando conquistar a plateia, ou seja, disputam a mente da plateia e visam cativar a sua opinião. Prova de que este é o objetivo é que, quando uma pessoa não consegue convencer a plateia de que as suas ideias são as melhores, ela busca atacar o rival, adversário ou oponente. Até mesmo estas nomenclaturas dadas para as outras pessoas que debatem mostram que as pessoas estão em lados oposto, brigando e disputando, ou seja, não estão trabalhando juntas, visando discutir, analisar e sugerir opções.

Usa-se o termo debate para diminuir o peso negativo da palavra briga e esta técnica de mudar uma palavra por outra, sem alterar o conceito, é muito usada. É uma forma de tentar dizer que somos melhores do que de fato somos, uma maneira de tentar mudar a visão sobre algo sem mudar nada na prática.

Exemplos disso são usar discussão em vez de briga, debate em vez de disputa; comunidade em vez de favela; negro em vez de preto (em relação à cor da pele); usar nomenclaturas técnicas em vez das populares, como transtorno de desenvolvimento de autismo em vez de autismo, profissional do sexo em vez de puta ou prostituta, hanseníase em vez de lepra, obeso em vez de gordo e outros tantos exemplos.

Os nomes populares são carregados de ideias, as quais são expressas por entonação. Para quem se sente desconfortável com tais entonações, é uma forma de humilhação, ofensa ou agressão. Então, para evitar esta sensação, pedem para ser usado nomes “corretos”. Assim como a briga que é chamada de discussão para as pessoas se sentirem melhor sem mudar o ato em si, a mudança desses outros nomes tem o mesmo objetivo. É uma maneira artificial de tentar mudar uma atitude e exigir que o outro nos trate de maneira mais agradável para nós simplesmente para que tenhamos menos desconforto. Em suma, a pessoa quer mudar o resultado da ação, mas não esta em si, porque ela não gosta de como se sente com a opinião do outro.

O que as pessoas não percebem é que a entonação, o peso da palavra, a conotação desta não está atrelada à palavra em si, mas à ideia que ela transmite. Daí que no início, ao iniciar a substituição de uma palavra por outra (ou expressão), funciona, porque ainda não está consolidado a ideia e conceito à palavra em si. Quando isso acontece, a nova palavra fica com a mesma conotação da palavra anterior.

Num passado recente a palavra favela era rotineiramente usada. Ela se referia a conjuntos estruturais de moradias em locais sem ordem pública, isto é, regiões onde não seguem muitas regras formais ou leis dentro da área urbana.

Por ser vista como inferior ou pior do que outras regiões, a palavra favela ganhou tal conotação. Muitas pessoas não se sentiam bem com isso por se sentir exatamente dessa forma, inferiores ou piores em relação a quem não morasse nestas regiões. Para mudar essa sensação sem fazer nada em relação à realidade, foi-se adotando a palavra comunidade e a palavra favela passou a ser vista como errada ou discriminatória. No início era bom, parecia que as pessoas de tais regiões, que continuavam as mesmas, eram melhores e mais próximas àquelas que não viviam em tais locais. Entretanto, com o passar do tempo, a definição de comunidade foi sendo atrelada ao conceito destas regiões. Assim, a definição da palavra comunidade mudou, passando a ter a mesma ideia, conceito e julgamento da palavra favela. A realidade não mudou, apenas o nome de referência. Agora a palavra comunidade se refere a estes locais e o seu significado original se perdeu.

Quando o ser humano deseja algo e não consegue, cria meios para acreditar que conseguirá ou conseguiu, ainda que parcialmente. Esta técnica de alterar o nome de algo como se fosse alterar o objeto específico é uma forma de buscar a sensação mais confortável e satisfação sem estudar o assunto. Em resumo, é uma maneira de tentar alterar o resultado sem entender ou estudar o que o gera, ou seja, sem fazê-lo de fato, e fazemos isso porque, embora não tenha o resultado que desejamos, acreditamos que o teremos e é uma maneira fácil e rápida de “consegui-la”.

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