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Pessoa ou cadáver?

Diante um morto a nossa visão sobre ele é confusa.

Por estarmos acostumados a vê-lo com vida, isto é, como pessoa, nós assimilamos o seu corpo com a personalidade que conhecemos sobre a pessoa que viveu com aquele corpo. Contudo ela não está mais lá, uma vez que não está viva. Essa percepção acontece quando conhecemos a pessoa que morreu. Já para um desconhecido o morto é um corpo, um objeto inanimado.

Por causa de nossa crença de achar que o morto ainda é uma pessoa concluímos algumas ideias, como a de que deve-se trata-lo bem e não viola-lo (não cometer atos que machucariam uma pessoa). Porém, ao não ter mais vida, não é uma pessoa. Então fica a pergunta: por que devemos tratar bem um objeto que não sente nada e não se mexe, totalmente inanimado? Fazemos isso com os demais objetos ou apenas os usamos para a nossa satisfação pessoal? Um pente, um carro, uma vassoura ou uma colher: objetos sem vida, inanimados e que são usados sem que pensemos em trata-los bem uma vez que eles não sentem prazer ou desprazer. Ademais, o que é tratar bem um objeto já que não sabemos do que ele gosta, deseja ou quais expectativas possui sobre ser tratado por nós? Além disso se queremos tratar bem esse objeto, como temos coragem de abandoná-lo e deixá-lo para os vermes o comerem, com se o mandássemos para um lixão (específico para defunto no caso)?

O fato de ser costume nos leva acreditar que seja certo e isso nos dá a sensação agradável de segurança. Contudo para outras condutas diferentes nós resistimos pelo simples fato de ser diferente. O corpo que não pode ser mexido de qualquer forma e deve ser tratado com carinho é mandado para a terra sozinho, preso num caixão para ser devorado por germes e vermes. Como podemos achar isso tão bom e certo além da ideia de repetirmos essa conduta sem ao mesmo a analisarmos?

Não imaginamos os vermes sobre o corpo, mas imaginamos o tratamento que o mesmo recebe por médicos ou outros profissionais que lidam com ele. É essa imaginação que nos incomoda, sendo a razão pela qual condenamos o tratamento que o cadáver recebe. Não é uma questão de ser certo ou errado, ou ainda de ser o melhor para o defunto, mas é o que é melhor para nós imaginarmos. Imaginar que o nosso parente (como vemos o morto) está sendo mal tratado por alguém nos incomoda. É por isso que condenamos condutas que incomodam essa nossa perspectiva. Contudo, se analisarmos o fato como ele é não o que imaginamos perceberemos que os nossos argumentos não possuem fundamento. O morto está morto, já não é uma pessoa. Daí tratar bem algo já perder o sentido.

Ao reproduzirmos o costume não o analisamos, simplesmente o replicamos. Sem análise não observamos as motivações ou maneiras da prática e isso nos impede de questionar, compreender e, talvez, de melhorar a nossa atitude ou sensação em relação à tradição. No caso de um morto nós desejamos que ele seja bem tratado por acharmos que ainda é a pessoa que conhecíamos, mas a tradição é de abandoná-lo para os vermes, o que contraria o desejo de ser bem tratado.

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